sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Origem do Poder (Parte 3) [final]



[ Última Parte ]

Capítulo 23
ORIGEM DO PODER
“Os mecanismos da Liberdade” - Lauro de Oliveira Lima



A dominação (e poder, portanto) provém de uma prótese qualquer, criando-se uma reação em cadeia, de modo que cada prótese adquirida implica em aumento de poder e cada aumento de poder redunda na possibilidade de o indivíduo adquirir novas próteses. O “poder” pois, é o mecanismo exterior à relação que provoca aparente equilíbrio onde ele realmente não existe. Esta reação em cadeia levaria o indivíduo, grupo ou classe ao poder absoluto se, num certo momento, esse processo circular não deixasse de receber realimentação. Com o tempo, se não aparecessem mecanismos corretores, o grupo que domina o poder passaria a ser uma nova espécie, cujo “alimento” seria a espécie dominada... Contudo, esses mecanismos corretores aparecem. O desenvolvimento da inteligência, por exemplo, a prótese que maiores vantagens acrescenta na capacidade de dominação, não de pode fazer sem relações de reciprocidade, isto é, sem supressão da dominação. Deste modo, em certo momento, não interessa mais a quem domina pela inteligência levar a dominação avante à custa de seu desenvolvimento integral, e mesmo podendo-se dizer, mutatis mudandis, de outras próteses. Em geral, espera-se que a reação contra o progressivo aumento de poder de dominação provenha de uma revolta dos dominados, o que é pouco provável, pois a dominação implica no enfraquecimento progressivo da capacidade de reação. O caso da libertação das mulheres, por exemplo, é bem elucidativo.
Num certo momento histórico ou psicológico, começou a ser empobrecedor para o homem-dominador o estado de dominação da mulher - o convívio com um débil mental, por exemplo, é prejudicial ou pouco estimulante - , de modo que os próprios machos mais inteligentes  começaram a promover o desenvolvimento das mulheres por puro egoismo. Os historiadores afirmam que a abolição da escravatura tem explicação semelhante … A necessidade que o sistema capitalista teve de engajar a mulher na produção (sociedade de consumo, mão-de-obra barata, convocação dos homens para a guerra, etc) levou o establishment a promover o desenvolvimento da mulher, fato que cria uma reação em cadeia capaz de  levar a mulher a procurar sua própria libertação. Tudo isso pode ser repetido em relação a qualquer classe ou grupo social dominado: não há exemplo histórico em qualquer grupo social longamente oprimido se tenha libertado sem que o processo haja sido iniciado pelo interesse (quase sempre imediatista) do próprio dominador. Os empresários atuais começaram a compreender, por exemplo, que a manutenção de rígida hierarquia e de dominação brutal não é de seu interesse a curto prazo. A  dominação priva-os da boa vontade, da criatividade e da cooperação dos subordinados, fato que os leva a permitir e estimular atitudes de  autonomia (no mínimo criam  mecanismos de “promoção humana” e de “relações humanas” que, por mais interesseiros ou hipócritas que sejam, iniciam um processo a longo prazo de rebeldia contra a dominação). Para o conflito, a solução é a associação e o contrato social (a democracia).
Mas os organismos vivos não iniciam a vida abruptamente: há sempre um período maior ou menor de crescimento. A primeira prótese ontogenética que dá vantagens a alguns indivíduos sobre os outros é a  condição de “progenitor” e de “educador”, prótese que, em termos antropológicos, denomina-se gerontocracia. Pode-se, pois, dizer que a dominação, isto é, o poder, tem sua origem biológica (ontogenética) na paternidade, e a filogenética na gerontocracia e não simplesmente na desigualde econômica e na usurpação da mais valia (o contrário é que  deve ser verdadeiro: o poder permite a usurpação). Assim, não se elimina a dominação simplesmente ao evitar-se a desigualdade econômica … Tanto é assim que o próprio Marx julga que os oprimidos podem rebelar-se contra esta usurpação e corrigir a situação … mediante a tomada do poder! Da posse do poder é que se iniciaria a homogeneização econômica … O fenômeno do poder, pois, é muito mais complexo e tem origens muito mais profundas. Quando Marx investiu, por exemplo, contra a religião, admitia consciente ou inconscientemente que o estado de dominação dos oprimidos não se explica apenas pelas desigualdades econômicas. O que os marxistas chamam “alienação”, a psicologia hoje explica como um estado de “infantilização”... todo dominador é, no fundo, um pai (carinhoso ou brutal, como ocorre serem os pais). A liberdade, pois, é antes de tudo a morte do pai (seja qual for a natureza da paternidade). O indivíduo só é adulto quando não reconhece mais paternidades, isto é, quando deixa a condição de filhote. A mística da paternidade humana domina avassaladoramente onde quer que a dominação não resulte da simples coação física. Quase sempre a própria dominação física não dispensa uma ponderável dose mística de relação paternal, começando pela universal  convicção de que Deus é o pai de todos os homens, com poderes absolutos de premiar e castigar... A comprovação de que houve esta independentização é o conflito, e sua solução, o acordo, isto é, a relação democrática em que as partes se tratam com respeito mútuo (“moral da solidariedade” frente à “moral heteronômica do dever” - Jean Piaget).
Quais as funções básicas do pai? Quais as funções úteis e biologicamente indispensáveis enquanto o filho está em crescimento e é ainda incapaz de prover seu próprio sustento e defender-se das agressões do meio? São as mesmas funções exercidas pelo útero. São precisamente as que correspondem ao funcionamento autônomo de todo organismo: [a] alimentar. [b] proteger e [c] desenvolver o filhote, de modo que, transpondo o problema para o nível sociocultural, pode-se distinguir, na origem, três tipos básicos de dominação ou de poder: [a] econômica (alimentação), [b] educacional (desenvolvimento) e [c] política (defesa). Quando, na adolescência do filhote, se manifestam os primeiros sintomas de rebeldia, os pais invocam, invariavelmente, sua “obrigação” de alimentar, orientar e defender o filhote, a seu ver “ainda” incapaz de sobreviver de forma autônoma. Isto revela um aspecto ambivalente na dominação, aspecto que aparece claro na proposta tecnocrata de uma sociedade gerida por uma classe social mais sábia: é a noção de paternidade transposta para o nível sociológico.
Os tiranos também apelam para este tipo de argumento: desenvolvimento (alimentação), segurança (defesa) e pureza ideológica (orientação), argumentos que mascaram a dominação. Quando esta dominação biológica (ontogenética) passa a ser sociológica (filogenética), temos os três sistemas básicos de dominação existentes na sociedade: [a] a que compreende a posse dos meios de produção (dominação econômica), [b] a que compreende a ideologia do grupo (religião, educação, tabus, valores, costumes, etc), [c]  a que compreende a organização social, cuja finalidade é a pretensa defesa dos direitos do indivíduo inerme perante os mais fortes, defesa que será feita pelos que têm o poder máximo - o Estado e sua burocracia, sobretudo a polícia, que adquire permissão de usar a violência. Basicamente, mesmo do ponto de vista biológico, o poder do pai se expressa por seu poder de “disciplinação” (força física) que vem a corresponder, na ordem sociológica, ao poder executivo (poder armado), de modo que , em última análise, todo poder é coação (assimilação). O próprio pai, a certa altura, não poderia continuar a ser pai (protetor) sem a capacidade de coação, o que mostra a farsa das alegações de proteção... Quando o poder de coação baseado na força corre perigo, o pai usa o “poder econômico” para dar-lhe nova solidez (do ponto de vista sociológico, esse fenômeno aparece como “estatização”).
Porém, mais que o poder econômico (que é exterior), é o poder ideológico (doutrinação) que garante a dominação, na medida em que é a organização das relações sociais. Deve-se entender que o político é a essência do poder, razão pela qual o Estado (expressão do poder político) se fortalece na linha da absorção progressiva destas duas outras formas de dominação. A censura (negativa) e a propaganda (positiva) governamentais, por exemplo, são as formas de “estatização” da pluralidade ideológica da sociedade (o totalitarismo político leva ao totalitarismo econômico e este, necessariamente, ao totalitarismo ideológico), de vez que a ultima ratio do poder é a força. Ora, a força é simplesmente a manifestação da capacidade de assimilação do objeto.
O poder, pois, é basicamente a força (capacidade de dominar), quer esta força provenha das baionetas, quer do controle econômico (alimentação) ou ideológico (dominação da “alma” do dominado). No fundo, pois, o “altruísmo” dos pais que alimentam, protegem e educam os filhotes, reflete apenas os mecanismos de função básica do organismo vivo que é assimilar tudo e todos, quer isto se faça pela força, quer por processos econômicos ou ideológicos... No fundo, os filhotes são a ampliação do espaço-vital dos pais no tempo e no espaço, nada tendo a relação pais-filhos da “sublimidade” que se lhe pretende atribuir, da mesma forma que não são altruístas ou magnânimos os cuidados do tirano paternalista: ambos cuidam apenas da conservação e manutenção de seu “território”, como o senhor de escravos cuida de alimentá-los porque  são um bem econômico a ser preservado.
O Estado tradicional encarna basicamente o poder político, para isto dispondo apenas da força pura. Neste Estado tradicional, o poder econômico ainda nascente (produtores, transportadores, comerciantes) e o poder ideológico (educadores, sacerdotes, artistas, cientistas, etc) conservam-se mais ou menos autônomos, na medida em que não questionam o poder do estado. Em geral, esses dois poderes abrigam-se sob a proteção do Estado, dispensando-se o Estado de controlá-los. Assim, o poder político é sempre dominador, podendo, a qualquer momento, assumir o poder econômico (estatização) e o poder ideológico (censura e propaganda) - quer dizer, totalitarismo. Mas não é fácil para o poder político dominar os demais. É muito mais difícil ainda o poder econômico e ideológico dominarem o poder político. Tradicionalmente, o poder econômico impõem-se ao poder político pela corrupção, de modo que não é verdade que o poder decorra  da posse dos meios de produção, como afirmam certas doutrinas. A luta do poder ideológico faz-se contra o poder político, primeiro, por meio do sagrado e, depois da racionalização progressiva (ciência) dos processos de produção e de governo. Frequentemente, entretanto, o poder político se exacerba e domina todos os demais, tendendo modernamente a tornar-se totalitário.
O grande pai, pois, é o poder político. Em todas as instituições (educacionais, governamentais, econômicas, etc) reproduz-se o mesmo modelo básico. Numa empresa, por exemplo, pode-se identificar o poder político nos gerentes e chefes, e o poder ideológico nos técnicos e o poder econômico nos capitalistas - podendo o equilíbrio não ser o que se apresenta na macroestrutura, pois o capitalista, por ser proprietário dos meios de produção, pode sobrepor-se aos técnicos e determinar o comportamento dos gerentes e chefes. Isso pode ocorrer ocasionalmente também no plano governamental: uma grande empresa pode determinar comportamentos ao poder político, conquanto o poder político não utilize a força para dominar o poder econômico. A sociedade anônima é uma espécie de “estatização” dos bens de uma empresa privada (com a sociedade anônima, desaparece o capitalista, isto é, o poder econômico autônomo). A experiência mostra que isto em nada modifica a estrutura de dominação das empresas. Os gerentes (o poder político) continuam a agir como se fossem capitalistas … O problema, pois, está sempre na democratização do poder político, uma vez que com este poder controlado tudo é possível em matéria de “negociação”... Se o poder mantém-se sob controle dos membros da sociedade (democracia), tudo mais pode vir a ser controlado pela ascendência que a política tem sobre o econômico e o ideológico. O problema, pois, é saber como se pode manter a democracia diante da ameaça permanente da força física … que predomina no poder político (poder executivo).

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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Origem do Poder (Parte 2) [continuação]

Continuação

Capítulo 23
ORIGEM DO PODER
“Os mecanismos da Liberdade” - Lauro de Oliveira Lima



Como não há limite para o conhecimento, não há também limite para a dominação. Assim, pode-se transferir o conceito de assimilação para o conceito de poder. O poder é a manifestação social e política da maior ou menor capacidade que o indivíduo tem de assimilar (dominar) os demais indivíduos da mesma espécie. Na assimilação o aspecto afetivo é tão importante quanto os fatores intelectuais baseados na magia, no misticismo, na ideologia (carisma e culta da personalidade), isto sem nos referirmos aos fatores econômicos. Pode-se dizer que o homem tem poder virtual sobre tudo, inclusive sobre os outros homens, porque tem poder sobre um “objeto” (ou organismo ou pessoa), é um organismo ou agente que pode assimilar este “objeto”, manipulá-lo, pô-lo a serviço de seus interesses, impedi-lo de pôr em perigo sua sobrevivência, seu status, seu prestígio, obrigá-lo a agir em seu benefício, etc. Um organismo que não tem mecanismos inatos de comportamento, que pode criar ilimitados esquemas de ação e, criando esquemas novos de ação determina novas necessidades originais a elas correspondentes … esse animal pode também, pelo menos teoricamente, dominar o universo inteiro - salvo apenas se a prática demonstrar que existe um limite em sua capacidade de inventar e descobrir. A recente aventura espacial do homem é uma demonstração dessa tese: não há limite espacial ou temporal para a capacidade real ou virtual de o homem assimilar o meio.
Cada indivíduo comporta-se como se fosse o único ser vivo dentro de um universo limitado “posto a serviço” de suas necessidades, empenhando-se ferozmente a assimilar o universo inteiro. Isso, através de estratégias de ação que visem a assimilação real ou virtual do conjunto de fenômenos ou de objetos da realidade. Ora, todo esquema de ação, ao se transformar em capacidade, é estritamente adequado a determinada necessidade. Não exercer determinada capacidade é privar o organismo de uma satisfação. Como a natureza não cria capacidades que não correspondam a necessidades, a satisfação das necessidades faz parte estrita da sobrevivência. Donde se pode concluir como os tabus sociais limitam ou deformam o equilíbrio biológico do ser humano. Ora, se a capacidade de assimilação do organismo humano é ilimitada, todas as coisas que compõem a realidade estão sob seu “poder”. Não assimilar algo assimilável , pois, é diminuir a capacidade vital. Uma das maiores tolices que a humanidade vem repetindo através dos tempos, é que se pode suprimir os “instintos”, o que equivale a dizer que se devem surprimir certas necessidades básicas. A supressão dos “instintos” implicaria na eliminação dos mecanismos naturais de sobrevivência do organismo. O que se pode fazer, em relação aos “instintos” (?) individuais é estabelecer regras (acordo) de tal modo que todos os organismos da mesma espécie possam satisfazer suas necessidades, dentro do mesmo espaço vital, com o máximo de lucros e o mínimo de perdas para cada indivíduo.
Outro exemplo de deformação do processo vital é a “filosofia” hindu de eliminação de atividade sensorial em benefício das atividades virtuais (meditação), o que pode levar a uma esquizofrenia, na medida em que os sentidos são as portas de entrada da realidade e os mediadores das relações do indivíduo com o meio. A diminuição das capacidades só pode resultar de acordo em vista do bem comum e o acordo é ainda um ato de “egoísmo”, na medida em que é a única solução para garantir a sobrevivência de organismos equipotentes dentro do mesmo espaço vital. Em termos de poder, pois, pode-se dizer que o homem pode e deve dominar tudo, porque pode assimilar tudo. Observando-se a natureza, verifica-se que cada espécie de animal instintivamente domina espécies inferiores e é dominada por espécies superiores, possuindo mecanismos inatos para conviver com os demais animais da mesma espécie. Os etologistas já descreveram quais são os mecanismos de equilibração com que  os animais da mesma espécie controlam a agressão mútua. Na disputa uns com os outros por seu próprio “espaço vital”, os indivíduos da mesma espécie não ultrapassam o limiar além do qual a sobrevivência da espécie correria perigo.
Ora, o homem não tem estes mecanismos instintivos de controle da agressão (da assimilação, da dominação e do poder), isto é, não tem  limitações naturais para sua capacidade ilimitada de assimilação, ou, se quisermos  falar na linguagem dos ecologistas, não tem limitações naturais para sua hostilidade. Deve, então, “fabricá-las” ao longo de seu desenvolvimento (ontogénese) e de sua evolução (filogênese), em forma de mandamentos, códigos, tabus, etiquetas, etc., impostos ou negociados. É por isso que o homem tem que criar normas de conviver. As primeiras foram atribuídas a Deus, quando é evidente que um grupo que precisa conviver descobriria, por si mesmo, estas regras elementares por mais baixo que fosse o seu nível mental. Estas limitações ou são impostas por certos indivíduos (legisladores, guias espirituais, condutores) ou por grupos e pelo Estado, ou então resultam de acordo livre das partes segundo a lei máxima d ganhos e mínimo de perdas. Pode ocorrer que as regras, em vez de disciplinarem as relações, visem evitar que as relações se estabeleçam, e isto sempre é feito em benefício dos dominadores. Quase todos os projetos civilizatórios consistem em amortecer as relações em vez de estabelecer-se um processo que resolva o funcionamento permanente do conflito.
Assim, teremos várias hipóteses de “convivência” dos indivíduos dentro do mesmo “espaço vital”, antes que a inteligência humana alcance o nível da negociação: (a) convivem todos os indiferentes, uns aos outros, como ocorre em grau maior ou menor numa multidão (“participação” por oposição a “interação”); (b) criam-se áreas compartimentalizadas tangenciais de conivência (“a liberdade de cada um vai até onde começa a do outro”) como ocorre no sistema arcaico de castas e como continua a ocorrer no atual sistema de classes sociais; c) uns dominam simplesmente os outros, usando-os como mero mecanismo de sua atividade (como se o outro se tivesse tornado uma prótese sua), modelo que, a partir da família, propagou-se por toda a organização social nos últimos milênios (heteronomia) e que se tornou o pólo basicamente oposto à democracia sendo evidente que esta solução implica em profundo desnivelamento entre os seres humanos, desnivelamentos que provêm da aquisição de próteses que são negadas aos dominados (armas, terra, instrução, crédito, carisma, etc.); d) entram em conflito ocasional ou permanente, conflito que seria o sinal de que o “outro” não se deixou dominar, como ocorre nas chamadas democracias liberais do ocidente - a chamada “meritocracia”, que deveria ser a institucionalização do conflito permanente, é uma farsa na medida em que alguns partem para a disputa com evidentes e marcantes desvantagens, quando a instalação do conflito permanente supõe, por exemplo, alimentação e educação equivalentes desde o período da gestação, o que leva a crer que antes da instalação da democracia deverá haver um período longo de homogeneização dos indivíduos dentro da sociedade no que tange á sua capacidade de enfrentarem-se, no conflito, uns aos outros; e) a negociação de um acordo (contrato social), segundo a lei do máximo de ganhos e do mínimo de perdas, acordo que resultaria da equilibração das capacidades homogeneizadas, de tal forma que ninguém pudesse dominar os demais, pois sem esta homogeneização a democracia é uma farsa ou uma concessão dos mais fortes.
A indiferença [a] mostra que não há interesse em assimilar o outro; [b] a compartimentalização ou convivência pacífica mostra que não há conflito quanto ao espaço vital ou que invadir o espaço vital do outro implicaria um risco de destruição;  [c] a dominação demonstra que uns são mais fortes que os outros; [d] o conflito denuncia certa equivalência de forças e interesses que não foram ainda resolvidos por um acordo (luta de classes?); [e] o acordo, finalmente, revela que a inteligência encontrou uma solução para a convivência dentro do mesmo “espaço vital”. O acordo supõe (1) equipotência, (2) interesses comuns, (3) flexibilidade para encontrar uma solução segunda a lei do máximo de lucros e mínimo de perdas. Em geral só nos referimos a “poder” no caso da dominação, o que demonstra que o poder é sempre a manifestação de um desequilíbrio na relação entre os indivíduos. Se o outro não fosse inferior, surgiria o conflito na tentativa de dominação mútua e provavelmente o problema seria resolvido, ou pela mútua destruição ou pelo contrato social.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A Origem do Poder (Parte 1)



Nota: Esse é um capítulo inteiro do livro "Os mecanismos da Liberdade", e pela sua extensão, está sendo postado em três partes. Essa é a primeira, e na sequência postaremos as demais. Boa leitura desse tema interessante e importante que é o PODER, numa visão particularmente bem desenvolvida.


Capítulo 23
ORIGEM DO PODER
“Os mecanismos da Liberdade” - Lauro de Oliveira Lima

A sobrevivência do organismo é garantida por sua capacidade de substituir as perdas decorrentes de seu funcionamento e por sua atividade adaptativa em relação às variações do meio. É do meio que o organismo retira a alimentação para a satisfação de suas necessidades, de modo que  alimentar-se implica em modificar o meio e em readaptar-se. É óbvio, pois que todo o organismo vivo possui o equipamento necessário para sobreviver quer como organismo autônomo, quer em simbiose com outros organismos. As relações dos organismos com o meio são , pois, sempre “antropofágicas”, incluindo-se nesta “antropofagia” os outros organismos vivos. E uma forma de simplificar o problema da assimilação: um organismo vivo está continuamente assimilando o meio em que vive.  Se a função assimilativa é invariável, as formas (estruturas, modelos) de assimilar variam de animal para animal e no animal humano, de acordo com seu nível de desenvolvimento, como se o animal humano não fosse uma espécie concluída, mas um embrião em plena gestação. Esta atividade do organismo que, em certo nível, pode ser chamada “conhecimento”, quando tomada em conjunto, denomina-se comportamento (do ponto de vista econômico, chama-se trabalho). O comportamento, que tem um aspecto subjetivo denominado consciência ou vida mental, portanto, é a estrutura atual da função de assimilação do organismo. Estudar o comportamento implica em estudar as formas que a assimilação toma ao longo do desenvolvimento e através da evolução.
Já vimos em outro local que o comportamento pode ser: (a) inato (“s´avoir inné”) ou (b) aprendido: por imitação (hábito, automatismo) e por ensaio e erro (inteligência). A infância tem por “objetivo” permitir que os filhotes aprendam, por imitação ou por ensaio e erro (invenção e descoberta) os comportamentos necessários à sobrevivência do organismo. Neste período de aprendizagem, o organismo continua protegido (como estava no útero) pelos indivíduos adultos de sua espécie. Pode dizer que, na infância, a criança continua, como filhote do canguru, na bolsa materna, em estado de gestação, exigindo-se que se construam, no corpo social, aparelhos de proteção e de estimulação do desenvolvimento das crianças (cada povo inventou um mecanismo diferente de gestação extra-uterina das crianças, sendo a mais divulgada no Ocidente, a família). Se não levarmos em conta os problemas de alimentação e de crescimento físico, a função principal da infância é a aquisição de hábitos de comportamento, entre os quais o mais relevante, evidentemente, é a linguagem. Só recentemente Jean Piaget descobriu que a coisa não se resume apenas em crescimento físico e aquisição de hábitos. Um processo embriológico tipico (neurônico e mental) continua a existir na criança, processo que pode continuar ativo  até quase a idade adulta. Este processo não se realizou no útero, porque depende, sobretudo, de interações com o meio  geral e físico e com este meio especial e restrito que é o meio sociocultural. Não nos referimos às aquisições pelas crianças dos comportamentos comunitários, embora a aquisição de alguns deles dependa da embriologia a que nos estamos referindo. Trata-se da progressiva operacionalização do pensamento, operacionalização que implica em mudanças radicais nas formas de comportamento através da aquisição de estruturas formais progressivamente mais complexas.
  Quando o comportamento é inteligente, varia em seu nível  de operacionalidade conforme o desenvolvimento do indivíduo, podendo alcançar o nível formal em que as assimilações se tornam virtuais. A seleção natural elimina todos os organismos que não possuem ou que deixam de possuir equipamento suficiente para a sobrevivência. Se os indivíduos que não completaram o seu desenvolvimento não fosse protegidos pelos adultos de sua espécie, seriam eliminados como se fossem espécimes deficitários. Como a ecologia é um processo de equilibração em permanente mudança (mais ou menos lenta ou catastrófica), a sobrevivência do organismo vivo depende de sua capacidade adaptativa, capacidade representada  sobretudo pela inteligência (“capacidade de construir novas estratégias de comportamento” - Jean Piaget). A sobrevivência inclui não só a capacidade para alimentar-se (substituição das perdas e aquisição de material para ultrapassagens), como a aptidão para defender-se contra as hostilidades do meio. Sem nos referirmos aqui à posse dos mecanismos de procriação e de criação que se referem a sobrevivência da espécie. Tudo que faz parte da sobrevivência deve evitendemente estar sob controle do organismo, sob pena de a sobrevivência ser um processo aleatório. Como  se vê, é de interesse estrito da conservação da vida que todo organismo não disponha de todos os meios necessários à sua sobrevivência, como exerça os atos necessários a esta sobrevivência, à revelia dos interesses dos demais organismos. Sempre que o indivíduo  sobrepõe outro interesse ao mecanismo básico de sua sobrevivência … deve-se indagar o que ocorreu no funcionamento normal do organismo.
Observando-se individualmente, qualquer animal, ele nos parece preocupado exclusivamente com a própria sobrevivência, à custa de tudo e de todos, inclusive à custa dos demais indivíduos de sua própria espécie, o que é muito compreensível, pois de outra forma o próprio processo vital como um todo, poderia correr risco de extinção. Cada organismo, pois, comporta-se como se fosse uma única célula viva no universo e como se o  universo todo estivesse a serviço exclusivo de sua sobrevivência. Evidentemente o universo de cada animal corresponde à extensão de sua capacidade de manipulação ao meio. Desta forma, cada ser vivo “devora” implacavelmente tudo que é necessário à sua sobrevivência, sem nenhuma consideração “ética”. Nesse sentido, a ética é uma invenção humana para mascarar e fazer sobreviver sua feroz antropofagia, pois, no fundo, as regras morais são apenas formas de proteção da invulnerabilidade de nosso ego. É nosso egoísmo que impõe aos demais as regras de respeito mútuo: nossa adesão a um código moral decorre das vantagens que isso nos advém. É a partir deste quadro biológico básico que se deve analisar o comportamento humano: essencialmente, cada organismo esforça-se por assimilar todos os elementos circunstanciais que satisfazem suas necessidades, pois, doutra forma poria em risco sua sobrevivência e a continuidade do fenômeno vital.
Transpondo esse quadro para o fenômeno político, pode-se dizer que cada organismo tem poder sobre tudo de que depende sua sobrevivência, evidentemente, em condições normais, pois pode sobrevir uma catástrofe ou mudança ecológica. A capacidade de agir em termos de sua própria sobrevivência é mais ou menos inata nos animais. Já vimos que o homem, ao contrário dos animais, não tem comportamentos hereditários, nem foi fabricado para determinada ecologia; cria não só os seus comportamentos, como controla e constrói sua ecologia. Assim, o homem é, ao mesmo tempo, dentre os animais, o mais indefeso em sua origem e o mais poderoso no processo de sobrevivência, porque é capaz de fabricar novas estratégias de comportamento e mudar a ecologia, não sendo um animal “especializado”. Não tendo comportamentos inatos, pode ser vítima de qualquer agressão do meio e, sendo capaz de inventar seu próprio comportamento e construir sua própria ecologia, é praticamente invulnerável às agressões do meio. Por aí se vê como é importante a “educação” do homem: a educação é precisamente o mecanismo de criação de condições para que o homem desenvolva todas as suas possibilidades de construção dos mais complexos e mais variados comportamentos, de criar a ecologia mais adequada às suas necessidades. Este problema é tanto mais grave quanto mais se desenvolve o homem e quanto mais se modifica a ecologia (cultura). Uma educação pelo hábito seria a fixação para sempre de um tipo estereotipado de cultura e de comportamento, o que reduziria o homem a um animal qualquer com comportamentos hereditários estereotipados e adequados apenas a determinada ecologia … O homem tem um alimento específico, podendo desenvolver os mais sofisticados tipos de fome. Pode, por exemplo, desenvolver a necessidade de ouvir Bach, que é uma necessidade (fome) que só se apresentar se o indivíduo conseguir evoluir para estados muito elevados de desenvolvimento. Assim, a natureza inteira pode vir a ser, eventualmente, alimento para o homem.
O homem, pois, é o sujeito para o qual a realidade inteira é objeto. Se seu comportamento pode construir as mais variadas estratégias, é imprevisível a que tipo de “objetos” estas estratégias virão a aplicar-se. A “necessidade” que os adolescentes tem de lutar uns com os outros, fenômeno que acontece também com algumas espécies de animais, deve provir desse excesso de estratégias disponíveis que só tem este meio de saatisfazer-se. Todo esquema adquirido passa a ser uma necessidade que deve ser satisfeita (“fome de estímulos”, conforme Jean Piaget). O homem altamente desenvolvido pode assimilar, real ou virtualmente, tudo, inclusive outros homens. Ora, assimilar, manipular o objeto é apossar-se dele (a posse pode ser virtual, caso em que se chama conhecimento). O conhecimento é uma espécie de domínio exercido pelo homem sobre a “natureza”).

[continua]
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