quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Entrevista Jean Piaget - 1969 - 4a parte/final da matéria

Reportagem: Jean Piaget
Revista «Primera Plana»
28 de janeiro de 1969
Uma colaboração de Héctor Álvarez

4º parte / final

O que é inteligência? Qual seu desenvolvimento na criança? A inteligência é ligada ao nível social? Atualmente, a pessoa mais qualificada para responder a essas perguntas é, incontestavelmente, o suíço Jean Piaget, de 72 anos1, cujos trabalhos são célebres no mundo inteiro. A revista L´Express, associada a «Primera Plana», entrevistou o cientista. Foi uma ótima oportunidade para conhecer suas opiniões sobre pontos importantes como a psicanálise, ou o significado final de sua atividade como investigador. Doutorado em ciências, biólogo apaixonado pela epistemologia e pela lógica, pela teoria do conhecimento científico, sua vocação para detectar os pontos importantes que acompanham a aventura do conhecimento humano fizeram dele um «psicólogo» de relevante influência sobre essa disciplina. Seus admiradores gostam de lembrar que quando fez 10 anos publicou um artigo sobre certa classe de pássaro albino que causou assombro entre os especialistas; que antes de fazer 15 anos, seus artigos sobre moluscos eram conhecidos na Europa toda. É apaixonante penetrar na sua obra começando pela trilogia: O nascimento da inteligência (1936), A construção do real (1937) e a Formação do símbolo (1945). Seguida por uma grande quantidade de livros, conferências e a sua tarefa docente em A Sorbonne e na Faculdade de Ciências de Genebra.

E quando pegamos uma única pedrinha, estamos acrescentando-lhe algo?

É claro. Uma única pedrinha contém a ideia de unidade. A unidade pode ter dois significados: a unidade lógica, a identidade; ou a unidade de aritmética, que é equivalente às outras unidades. Desafio você a encontrar um conhecimento que seja deduzido exclusivamente do objeto.

O exemplo das pedrinhas mostra exatamente o caso da matemática moderna.
As crianças descobrem por si mesmas as correspondências, descobrem, de certo modo, a teoria dos conjuntos, sem que nada lhes seja imposto.

Perfeitamente. E tudo isto está bem mais próximo da criança do que a matemática clássica.

Desta forma, aproximamo-nos também da topologia.

Seguramente.

Qual seria sua definição da topologia?

As relações de classes, do ponto de vista lógico - relações entre indivíduos ou entre classes -, podem apoiar-se nas semelhanças e diferenças (e neste caso temos a lógica das classes e das relações), ou nas vizinhanças, nos conjuntos, figuras, etc., e aí temos então, precisamente, o aspecto geométrico e topológico.

E essas vizinhanças têm alguma correspondência mais profunda em nós? De que maneira o recém-nascido descobre o mundo ao seu redor?

O mundo para ele é, antes de tudo, um conjunto de quadros perceptivos em movimento. E claro, então, que as vizinhanças desempenham um papel importante na proximidade perceptiva.

Quando vê um rosto debruçando-se sobre seu berço, o que lhe ocorre? É alguma sombra?

Absolutamente, não. Deve percebê-lo aproximadamente como nós. O problema principal é saber o que acontece quando ele não o vê mais, pois não tem os meios para evocá-lo, já que não possui a função semiótica e ainda não construiu o espaço. Consequentemente, o rosto debruçado sobre seu berço não é nem localizável, nem evocável, quando desaparece de sua vista.
A hipótese mais simples é supor que se trata para ele de uma espécie de quadro que, depois de aparecer, desaparece e é reabsorvido nos outros quadros, podendo reaparecer mais tarde. O bebê tem um procedimento muito eficaz para provocar o reaparecimento do quadro: é só gritar bem forte, por muito tempo. Seguramente reaparecerá.

Mas como a partir daí constrói-se um mundo de objetos ao seu redor?

Graças a um processo de coordenação dos deslocamentos e das posições, que se organizam em um grupo matemático, na medida em que a construção do espaço se torna mais exata, e o objeto, agora localizável, continua existindo mesmo quando não é mais percebido. Há uma correlação estreita entre a permanência do objeto e a construção dos grupos.

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Você se interessou pela psicanálise?

Sim. O que lhe falta é o controle (científico). Não creio que já seja totalmente uma ciência. Os psicanalistas reúnem-se ainda em "panelinhas", e isto é muito complicado. Em cada "seita", os pesquisadores acreditam imediatamente uns nos outros: compartilham uma verdade comum. Enquanto que na psicologia, a primeira reação é procurar contradizer. Os psicanalistas referem-se a uma verdade que deve mais ou menos estar conforme os escritos de Freud, o que me parece muito opressivo.

Você acha que a psicanálise pode vir a tornar-se uma ciência?

Na medida em que nela aparecerem mais heréticos, certamente.

Você viu aparecer o subconsciente nas suas experiências com as crianças?

Ouça: esta pergunta sempre me surpreende! Tem-se a ideia de que o subconsciente seria em essência, algo de especificamente afetivo, quando três quartas partes do que estudo, no campo da inteligência, que é meu campo, é inconsciente, do ponto de vista do sujeito... A consciência no plano da inteligência, é o resultado de uma "tomada de consciência" extremamente parcial e frequentemente deformante em relação às estruturas subjacentes, que vão sendo descobertas por uma série de cortes.

Você me pergunta se encontrei o subconsciente. É claro que sim! No plano afetivo, encontrei-o no jogo simbólico, onde aparece sob uma forma bem freudiana. Lembro-me de uma brincadeira de meus filhos, dizendo que papai estava morto ou que fora mandado para muito longe, ou coisa parecida...

Brincar de pai e mãe é um exemplo de jogo simbólico?

Jogo simbólico é toda brincadeira que consista em representar algo com objetos ou gestos diferentes. No jogo simbólico, a todo momento percebe-se a manifestação de complexos afetivos. Um de seus objetivos é "liquidar" os conflitos. Surge, por exemplo, um conflito entre pais e filhos na hora da refeição: uma menina não quis comer sua sopa, provocando assim discussão sobre isto. Pode-se estar certo que esse conflito aparecerá à tarde, quando ela estiver brincando com sua boneca. A menina frequentemente possui uma pedagogia mais adequada que a de seus pais: ela explica à sua boneca o que tinha de fazer; ou mais simplesmente, já que não há problema de dignidade, a criança dá razão aos pais através deste mecanismo simbólico. Enquanto que durante a refeição, ela não podia "entregar os pontos", assim sem mais, nem menos.

A estrutura do jogo simbólico é então uma estrutura importante para o psiquismo humano?

Claro! E se eu fosse psicólogo ter-me-ia dedicado a este problema continuamente.

Se fosse psicólogo?

Sim, porque sou epistemólogo. Meu domínio é o conhecimento.

Você acha que seus trabalhos se conciliam com a teoria freudiana?

Ah! Vários freudianos estão procurando demonstrar isso. Parece-me indubitável. Mas isto depende de como a gente se compromete com o freudismo. Os psicanalistas perderam com David Rappaport, um homem que, a meu ver, era seu melhor teórico. Morreu há alguns anos, quando tinha apenas 40 anos. Rappaport fez um lindo trabalho a respeito da noção freudiana de carga afetiva. Era formado em física antes de tornar-se médico-psicanalista. Via estreita analogia entre a catarse freudiana e minhas ideias sobre a assimilação.

De maneira geral, acho que o acordo é certo, mas há sempre uma ocasião em que o psicanalista continua a contar coisas com segurança quando o que queremos são as provas do que diz.

Em outras palavras, você acha que a psicanálise ainda está para constituir-se como ciência?

Em minha opinião, em grande parte, sim. Mas com dificuldades bem maiores do que as que encontramos. Note que fiz psicanálise didática para saber o que era. Fiquei muitíssimo interessado.

E sentiu-se diferente depois desta análise?

Tive impressão que é muito útil para o homem normal. Mas pode tornar-se perigosa para os casos patológicos.



Uma última pergunta: você gosta de criança?

Mas é claro! Eu permaneci sempre um pouco infantil!

                                    

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Entrevista Jean Piaget - 1969 - 3a. parte

Reportagem: Jean Piaget
Revista «Primera Plana»
28 de janeiro de 1969
Uma colaboração de Héctor Álvarez

3º parte

O que é inteligência? Qual seu desenvolvimento na criança? A inteligência é ligada ao nível social? Atualmente, a pessoa mais qualificada para responder a essas perguntas é, incontestavelmente, o suíço Jean Piaget, de 72 anos1, cujos trabalhos são célebres no mundo inteiro. A revista L´Express, associada a «Primera Plana», entrevistou o cientista. Foi uma ótima oportunidade para conhecer suas opiniões sobre pontos importantes como a psicanálise, ou o significado final de sua atividade como investigador. Doutorado em ciências, biólogo apaixonado pela epistemologia e pela lógica, pela teoria do conhecimento científico, sua vocação para detectar os pontos importantes que acompanham a aventura do conhecimento humano fizeram dele um «psicólogo» de relevante influência sobre essa disciplina. Seus admiradores gostam de lembrar que quando fez 10 anos publicou um artigo sobre certa classe de pássaro albino que causou assombro entre os especialistas; que antes de fazer 15 anos, seus artigos sobre moluscos eram conhecidos na Europa toda. É apaixonante penetrar na sua obra começando pela trilogia: O nascimento da inteligência (1936), A construção do real (1937) e a Formação do símbolo (1945). Seguida por uma grande quantidade de livros, conferências e a sua tarefa docente em A Sorbonne e na Faculdade de Ciências de Genebra.

Os chimpanzés também têm função semiótica?

A função semiótica? Eles encontram-se na fronteira. É surpreendente a experiência com distribuidores automáticos com as fichas. Um chimpanzé é treinado para colocar fichas num distribuidor, de onde retira bananas ou outras frutas. Em seguida, fichas lhe são dadas, sem que o distribuidor esteja visível. Ele as guarda, cuidadosamente. Se lhe damos fichas falsas, muito grandes ou muito pequenas, zanga-se e afasta-as. É a primeira fase da experiência.

Em seguida, o chimpanzé é colocado junto a um colega faminto. Os chimpanzés são muito generosos, dando bananas uns aos outros, etc.... O primeiro chimpanzé passa as fichas ao colega que já foi também treinado para a utilização correta das fichas; ele as recebe com gratidão. Mas, se o primeiro chimpanzé oferece-lhe fichas falsas, recusa-as, jogando-as na cara do companheiro. E um esboço de função semiótica. A ficha é um tipo de moeda, distinguindo-se as falsas das verdadeiras. Duvido que o bebê chegue a esse ponto antes dos 2 anos.



O que você diz, o tempo todo, a respeito dos diferentes estádios do desenvolvimento da inteligência ocasiona, sem dúvida, certas consequências no plano pedagógico. Existe atualmente alguma relação entre seus trabalhos e a pedagogia, tal qual ela existe na Suíça ou na França, por exemplo?


Não sou pedagogo. Serei, portanto, cauteloso em minhas respostas. Mas analisemos o exemplo da matemática moderna, que é hoje ensinada muito cedo. Há dois aspectos bem diferentes a distinguir. Por um lado, há o método utilizado para ensiná-la: pode-se ensiná-la de maneira tradicional, isto é, verbalmente, o que leva ao desastre. Por outro lado, pode-se ensiná-la a partir de atividades e de descobertas da criança, o que seria excelente, pois as pesquisas que pude fazer sobre as estruturas lógico-matemáticas mostram que existe profundo parentesco entre as estruturas da matemática moderna e as estruturas espontâneas da inteligência da criança. Toda vez que se ensina algo à criança sem deixá-la participar, impede-se que ela descubra por si própria.  É o fracasso.

Em suma, você questiona então todo o nosso sistema de ensino?

Evidentemente.

Como se traduz de maneira concreta o fato de se dever deixar a criança descobrir, inteiramente, por si mesma?

Inteiramente não. Pode-se guiá-la. A função do professor é encontrar os dispositivos que permitem que a criança progrida. A aquisição do que se faz ou se descobre é bem melhor. Mas antes de tudo, qual é o objetivo da escola? É formar criadores, inovadores ou indivíduos que reproduzam o que já aprenderam as gerações anteriores?

Mas só se pode pesquisar corretamente, se já sabemos certas coisas.

Certo. Mas aprendê-las em função de uma pesquisa é inteiramente diferente de aprendê-las, por assim dizer, sem contexto.

Você acha que a vulgarização atual da psicologia permite aos pais assumirem melhor seu papel, ou, ao contrário, concorre para ficarem tão perturbados que já não sabem como tratar seus filhos?

As duas hipóteses. A pedagogia é uma das raras profissões onde cada um pensa que é competente. E isso é muito perigoso.

Como fazer de outra forma?

Formando os professores, por exemplo. Quando se deseja ensinar, creio que é de infinita utilidade ter feito antes pesquisa em psicologia. Sempre tive muita admiração pela sabedoria de Édouard Claparède, que dizia: "Deveríamos dar a todo futuro mestre-escola, e isto é válido também para os pais, algum curso sobre psicologia animal, com trabalhos práticos, pesquisa, treinamento, etc. Porque se o treinamento do animal falha, o treinador assume sempre que o erro foi seu, enquanto que quando treinamos uma criança e falhamos, a culpa é da criança". Não são as crianças que necessitam de surras, são os pais.

E quais são os erros que cometemos?

Para mim, o primeiro é o excesso de autoridade. Não que ela seja desejada em si, mas causada pela ignorância de todo o trabalho espontâneo que ocorre na mente da criança. O fato é chocante no plano intelectual. A não-conservação e a conservação de que falo a todo momento são fatos descobertos, que, quando os transmitíamos inicialmente, provocavam reserva nos pedagogos. A princípio, não acreditaram, e isto por muito tempo. Despois não podiam entender como não tinham percebido isso antes. Em seguida, afirmavam que uma descoberta desta natureza era inverossímil, e com certeza era excepcional que se constatassem fenômenos deste gênero. Bastava observar melhor as crianças, em vez de lhes fazer conferências.

Você pensa que a autoridade poderia ser eliminada?

É preciso reduzi-la ao mínimo e estabelecer, o mais rapidamente possível, relações de reciprocidade afetiva e intelectual.

Ao abolir a autoridade, chega-se às vezes à....

Chega-se a compreensão, ao invés da imposição. Não impor regras antes que sejam compreensíveis, e que estas sejam aprendidas a partir da experiência da própria criança. Eis aí o que se deve fazer.

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Você dedicou um livro ao nascimento da moralidade na criança. Como se desenvolve o sentimento moral? Quais são suas fases?

A moral das crianças pequenas é antes de tudo uma moral de submissão. O bem é o que está de acordo com as regras impostas pelo adulto. O mal é tudo o que infringe a regra, em geral de uma maneira estritamente literal, isto é, una mentira é julgada como sendo mais feia quanto mais se afasta da realidade, quanto mais incrível é.
Já a partir de cerca de 7 anos, em média, aparece uma moral de reciprocidade nas crianças, que se faz frequentemente em detrimento do adulto. Produz, em particular, a ideia de justiça, por ocasião de uma injustiça ocorrida. Chegamos então à moral de autonomia, em estreita correlação com o desenvolvimento intelectual da criança.

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Você acha que o objetivo mais importante da psicologia seria melhorar os homens?

Sim, é uma possibilidade. É a mais importante. Mas você está me deixando confuso, porque não é esta a tarefa que escolhi. Acho que a pesquisa tem prioridade em relação a qualquer aplicação.
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Eis que voltamos à sua atividade como cientista. Como 40 anos de pesquisa o ajudaram a compreender melhor certos problemas epistemológicos, relativos à teoria do conhecimento?

O problema essencial da epistemologia é a relação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. O empirismo, por exemplo, dá mais importância ao objeto, chegando assim à ideia de que o conhecimento é uma cópia do objeto. Quis verificar experimentalmente se de fato todo conhecimento provém da experiência. Utilizei os métodos do empirismo para verificar se o empirismo é verdadeiro. Mas cheguei à conclusão de que o conhecimento não é só o registro, a marca deixada pelo objeto no sujeito, a cópia do objeto.
Toda vez que observamos a formação de um conhecimento, constatamos a atividade do sujeito que acrescenta algo ao objeto. O estudo empírico do conhecimento contesta o empirismo. A experiência supõe sempre um quadro lógico matemático que não é dado pela própria experiência

O que o sujeito acrescenta?

Coordenações, relações (correspondências)

Que significa isto?

Analisemos um exemplo de experiência lógico-matemática. Uma criança que alinha pedrinhas, contando-as da esquerda para a direita, encontra dez pedrinhas. Conta, então, na direção oposta e, muito surpresa, descobre que dá novamente dez pedrinhas. Coloca então as pedrinhas em círculo. Conta de novo e chega, mais uma vez, ao mesmo resultado. Conta de trás para diante e encontra, novamente, dez.
A experiência acaba de ensinar-lhe que a soma é independente da ordem. Nem a soma, nem a ordem estão contidas nas pedrinhas. As pedrinhas não estavam ordenadas. Foi a própria criança que as alinhou, que as colocou em círculo, etc.
A ordem foi acrescentada pela ação do sujeito, foi o objeto enriquecido com uma estrutura que permitiu sua compreensão. Acontece o mesmo com a soma. As pedrinhas estavam lá, mas não eram dez até que fossem colocadas em correspondência com os nomes dos números. O número dez no é uma característica das pedrinhas e sim uma relação de correspondência entre conjuntos múltiplos. Tudo isto supõe atividade do sujeito. No foi apenas a fotografia das pedrinhas que lhe forneceu estes dados.


Continua...
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