quarta-feira, 6 de abril de 2016

Gravar ou operar o conhecimento?

Temas Piagetianos
Lauro de Oliveira

Editora AO LIVRO TÉCNICO S.A
Indústria e Comércio
Rio de Janeiro – RJ / 1984

Gravar ou operar o conhecimento?
Aristóteles e Platão vêm aí – Silos para guardar -Morte da memória biopsicológica – A corrida entre o professor e os meios de comunicação da massa – Resistência à mudança: sinônimo de insegurança – Importante é jogar.
         As artes (técnicas) tradicionais da humanidade são a medicina, a educação, a agricultura, a culinária, a pecuária.... Desde a caverna ancestral, os homens, em geral, tentam curar as doenças educar os filhos, plantar cereais, criar animais domésticos e cozinhar os alimentos. É compreensível, portanto, que essas artes ou técnicas estejam impregnadas de sólidas tradições empíricas acumuladas ao longo dos milênios. E as tradições passam de pai para filhos, geração após geração, conservando-se como se fossem verdadeiros instintos (os hábitos e costumes – diz Jean Piaget – são como “instintos aprendidos”).
A tradição, os hábitos e os costumes impregnam-se no comportamento individual como se fossem verdadeiros instintos.
Quando se trata dessas experiências, vindas ainda da noite dos tempos, a ciência torna-se quase impotente: é dificílimo, em nome das descobertas científicas, modificar o comportamento dos homens no que se refere à educação, medicina, agricultura, arte culinária e construção de casas. Em parte, com muita razão, a experiência milenar não pode ter-se enganado totalmente, embora pode ser superada, tecnicamente, por modelos elaborados a partir da pesquisa científica. A medicina e a agricultura são exemplos flagrantes de que a ciência pode oferecer novas. Mas, mesmo em matéria de medicina e agropecuária, a resistência à mudança (até das pessoas, aparentemente, educadas) é quase insuperável. Que o digam os desbravadores que tentam mudar o comportamento (higiene, agricultura, pecuária) das populações marginalizadas. E o mais surpreendente é que as pessoas cultas (pelo menos é essa a presunção com relação aos professores) resistem, irracionalmente, às mudanças exigidas pela pesquisa científica, como no caso das técnicas educativas os professores continuam a dar aula da mesma forma como fazia “o mestre iniciador” da tribo pré-histórica! Aristóteles e Platão, voltando aos liceus e academias de hoje, não teriam que modificar sua maneira de dar aula: seu estilo está perfeitamente adaptado aos 2 mil e 500 anos de evolução e desenvolvimento tecnológico... isso nos leva a conclusão de que o professor é um fóssil vivo, sobrevivente a todas as mudanças provocadas pelo progresso do conhecimento humano! O pior é que o professor é o próprio símbolo do conhecimento, da pesquisa científica, da busca da verdade, da desmistificação da superstição... conquanto isso não implique a mudança de seu próprio comportamento.

A televisão é, apenas, um brinquedo para as multidões: importante mesmo é o gravador.
Nos últimos tempos (não faz 50 anos), ocorreram fatos que modificam, essencialmente, o paradigma tradicional do fenômeno educativo. Até bem pouco tempo, o objetivo da educação era a conservação do conhecimento e sua transmissão às novas gerações (nas tribos pré-históricas, os velhos eram “o banco de dados” em que se preservava a experiência acumulada). A partir da descoberta da escrita, esta função co0meçou a tornar-se “tecnológica” (o livro dispensa a gravação, de memória, das informações que devem ser conservadas). Recentemente, os gravadores de todos os tipos eliminaram a necessidade de memorizar (atividade que a escola persegue, perigosamente). O banco de dados e o fichário fazem, hoje, o papel que, durante milênios e milênios estava reservado à memória. Com os computadores, criou-se, inclusive, uma ciência da memória: a informática (finalmente a mente ficou livre para pensar!).

O homem, finalmente, libertou-se da escravidão milenar decorrente da necessidade de memorizar...

O banco de dados é uma memória coletiva à disposição de todos. E agora? Para que serve a escola? Os mestres não perceberam as mudanças tecnológicas e continuam a empanturrar às crianças com informações (a apoteose do anacronismo é o vestibular). Por que se recusam a admitir as mudanças ocorridas? É que não saberiam o que fazer se tivessem que descartar a memorização em suas aulas... A mudança implicaria numa desorganização total das técnicas didáticas, a começar pela noção do livro didático (uma das mais poderosas e rentáveis indústrias do mundo moderno).
E se um professor mais ousado resolvesse aceitar as mudanças, o que deveria fazer? À gravação opõe-se a operacionalização do conhecimento (à exercitação opõe-se o desafio do problema) O livro didático (em forma de tratado) passaria a ser mera fonte de consulta (assim como funciona para os cientistas e profissionais). Educar seria provocar a utilização operativa dos conhecimentos acumulados nos livros, fichários e bancos de dados (para obtê-los faz-se uma pesquisa). O professor passaria (de informador-iniciador) a ser uma fonte de desafio, provocação, estimulação (só indivíduos excepcionais conseguem comportar-se como desequilibradores: muito mais fácil é recitar o conhecimento acumulado). O que se mediria nos exames não seria a massa de dados acumulados, mas nas estratégias adquiridas pelo corpo, pela linguagem e pela mente. Em síntese a educação passaria a ser um jogo.

Outubro, 1979
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