quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A Origem do Poder (Parte 1)



Nota: Esse é um capítulo inteiro do livro "Os mecanismos da Liberdade", e pela sua extensão, está sendo postado em três partes. Essa é a primeira, e na sequência postaremos as demais. Boa leitura desse tema interessante e importante que é o PODER, numa visão particularmente bem desenvolvida.


Capítulo 23
ORIGEM DO PODER
“Os mecanismos da Liberdade” - Lauro de Oliveira Lima

A sobrevivência do organismo é garantida por sua capacidade de substituir as perdas decorrentes de seu funcionamento e por sua atividade adaptativa em relação às variações do meio. É do meio que o organismo retira a alimentação para a satisfação de suas necessidades, de modo que  alimentar-se implica em modificar o meio e em readaptar-se. É óbvio, pois que todo o organismo vivo possui o equipamento necessário para sobreviver quer como organismo autônomo, quer em simbiose com outros organismos. As relações dos organismos com o meio são , pois, sempre “antropofágicas”, incluindo-se nesta “antropofagia” os outros organismos vivos. E uma forma de simplificar o problema da assimilação: um organismo vivo está continuamente assimilando o meio em que vive.  Se a função assimilativa é invariável, as formas (estruturas, modelos) de assimilar variam de animal para animal e no animal humano, de acordo com seu nível de desenvolvimento, como se o animal humano não fosse uma espécie concluída, mas um embrião em plena gestação. Esta atividade do organismo que, em certo nível, pode ser chamada “conhecimento”, quando tomada em conjunto, denomina-se comportamento (do ponto de vista econômico, chama-se trabalho). O comportamento, que tem um aspecto subjetivo denominado consciência ou vida mental, portanto, é a estrutura atual da função de assimilação do organismo. Estudar o comportamento implica em estudar as formas que a assimilação toma ao longo do desenvolvimento e através da evolução.
Já vimos em outro local que o comportamento pode ser: (a) inato (“s´avoir inné”) ou (b) aprendido: por imitação (hábito, automatismo) e por ensaio e erro (inteligência). A infância tem por “objetivo” permitir que os filhotes aprendam, por imitação ou por ensaio e erro (invenção e descoberta) os comportamentos necessários à sobrevivência do organismo. Neste período de aprendizagem, o organismo continua protegido (como estava no útero) pelos indivíduos adultos de sua espécie. Pode dizer que, na infância, a criança continua, como filhote do canguru, na bolsa materna, em estado de gestação, exigindo-se que se construam, no corpo social, aparelhos de proteção e de estimulação do desenvolvimento das crianças (cada povo inventou um mecanismo diferente de gestação extra-uterina das crianças, sendo a mais divulgada no Ocidente, a família). Se não levarmos em conta os problemas de alimentação e de crescimento físico, a função principal da infância é a aquisição de hábitos de comportamento, entre os quais o mais relevante, evidentemente, é a linguagem. Só recentemente Jean Piaget descobriu que a coisa não se resume apenas em crescimento físico e aquisição de hábitos. Um processo embriológico tipico (neurônico e mental) continua a existir na criança, processo que pode continuar ativo  até quase a idade adulta. Este processo não se realizou no útero, porque depende, sobretudo, de interações com o meio  geral e físico e com este meio especial e restrito que é o meio sociocultural. Não nos referimos às aquisições pelas crianças dos comportamentos comunitários, embora a aquisição de alguns deles dependa da embriologia a que nos estamos referindo. Trata-se da progressiva operacionalização do pensamento, operacionalização que implica em mudanças radicais nas formas de comportamento através da aquisição de estruturas formais progressivamente mais complexas.
  Quando o comportamento é inteligente, varia em seu nível  de operacionalidade conforme o desenvolvimento do indivíduo, podendo alcançar o nível formal em que as assimilações se tornam virtuais. A seleção natural elimina todos os organismos que não possuem ou que deixam de possuir equipamento suficiente para a sobrevivência. Se os indivíduos que não completaram o seu desenvolvimento não fosse protegidos pelos adultos de sua espécie, seriam eliminados como se fossem espécimes deficitários. Como a ecologia é um processo de equilibração em permanente mudança (mais ou menos lenta ou catastrófica), a sobrevivência do organismo vivo depende de sua capacidade adaptativa, capacidade representada  sobretudo pela inteligência (“capacidade de construir novas estratégias de comportamento” - Jean Piaget). A sobrevivência inclui não só a capacidade para alimentar-se (substituição das perdas e aquisição de material para ultrapassagens), como a aptidão para defender-se contra as hostilidades do meio. Sem nos referirmos aqui à posse dos mecanismos de procriação e de criação que se referem a sobrevivência da espécie. Tudo que faz parte da sobrevivência deve evitendemente estar sob controle do organismo, sob pena de a sobrevivência ser um processo aleatório. Como  se vê, é de interesse estrito da conservação da vida que todo organismo não disponha de todos os meios necessários à sua sobrevivência, como exerça os atos necessários a esta sobrevivência, à revelia dos interesses dos demais organismos. Sempre que o indivíduo  sobrepõe outro interesse ao mecanismo básico de sua sobrevivência … deve-se indagar o que ocorreu no funcionamento normal do organismo.
Observando-se individualmente, qualquer animal, ele nos parece preocupado exclusivamente com a própria sobrevivência, à custa de tudo e de todos, inclusive à custa dos demais indivíduos de sua própria espécie, o que é muito compreensível, pois de outra forma o próprio processo vital como um todo, poderia correr risco de extinção. Cada organismo, pois, comporta-se como se fosse uma única célula viva no universo e como se o  universo todo estivesse a serviço exclusivo de sua sobrevivência. Evidentemente o universo de cada animal corresponde à extensão de sua capacidade de manipulação ao meio. Desta forma, cada ser vivo “devora” implacavelmente tudo que é necessário à sua sobrevivência, sem nenhuma consideração “ética”. Nesse sentido, a ética é uma invenção humana para mascarar e fazer sobreviver sua feroz antropofagia, pois, no fundo, as regras morais são apenas formas de proteção da invulnerabilidade de nosso ego. É nosso egoísmo que impõe aos demais as regras de respeito mútuo: nossa adesão a um código moral decorre das vantagens que isso nos advém. É a partir deste quadro biológico básico que se deve analisar o comportamento humano: essencialmente, cada organismo esforça-se por assimilar todos os elementos circunstanciais que satisfazem suas necessidades, pois, doutra forma poria em risco sua sobrevivência e a continuidade do fenômeno vital.
Transpondo esse quadro para o fenômeno político, pode-se dizer que cada organismo tem poder sobre tudo de que depende sua sobrevivência, evidentemente, em condições normais, pois pode sobrevir uma catástrofe ou mudança ecológica. A capacidade de agir em termos de sua própria sobrevivência é mais ou menos inata nos animais. Já vimos que o homem, ao contrário dos animais, não tem comportamentos hereditários, nem foi fabricado para determinada ecologia; cria não só os seus comportamentos, como controla e constrói sua ecologia. Assim, o homem é, ao mesmo tempo, dentre os animais, o mais indefeso em sua origem e o mais poderoso no processo de sobrevivência, porque é capaz de fabricar novas estratégias de comportamento e mudar a ecologia, não sendo um animal “especializado”. Não tendo comportamentos inatos, pode ser vítima de qualquer agressão do meio e, sendo capaz de inventar seu próprio comportamento e construir sua própria ecologia, é praticamente invulnerável às agressões do meio. Por aí se vê como é importante a “educação” do homem: a educação é precisamente o mecanismo de criação de condições para que o homem desenvolva todas as suas possibilidades de construção dos mais complexos e mais variados comportamentos, de criar a ecologia mais adequada às suas necessidades. Este problema é tanto mais grave quanto mais se desenvolve o homem e quanto mais se modifica a ecologia (cultura). Uma educação pelo hábito seria a fixação para sempre de um tipo estereotipado de cultura e de comportamento, o que reduziria o homem a um animal qualquer com comportamentos hereditários estereotipados e adequados apenas a determinada ecologia … O homem tem um alimento específico, podendo desenvolver os mais sofisticados tipos de fome. Pode, por exemplo, desenvolver a necessidade de ouvir Bach, que é uma necessidade (fome) que só se apresentar se o indivíduo conseguir evoluir para estados muito elevados de desenvolvimento. Assim, a natureza inteira pode vir a ser, eventualmente, alimento para o homem.
O homem, pois, é o sujeito para o qual a realidade inteira é objeto. Se seu comportamento pode construir as mais variadas estratégias, é imprevisível a que tipo de “objetos” estas estratégias virão a aplicar-se. A “necessidade” que os adolescentes tem de lutar uns com os outros, fenômeno que acontece também com algumas espécies de animais, deve provir desse excesso de estratégias disponíveis que só tem este meio de saatisfazer-se. Todo esquema adquirido passa a ser uma necessidade que deve ser satisfeita (“fome de estímulos”, conforme Jean Piaget). O homem altamente desenvolvido pode assimilar, real ou virtualmente, tudo, inclusive outros homens. Ora, assimilar, manipular o objeto é apossar-se dele (a posse pode ser virtual, caso em que se chama conhecimento). O conhecimento é uma espécie de domínio exercido pelo homem sobre a “natureza”).

[continua]

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