sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Origem do Poder (Parte 3) [final]



[ Última Parte ]

Capítulo 23
ORIGEM DO PODER
“Os mecanismos da Liberdade” - Lauro de Oliveira Lima



A dominação (e poder, portanto) provém de uma prótese qualquer, criando-se uma reação em cadeia, de modo que cada prótese adquirida implica em aumento de poder e cada aumento de poder redunda na possibilidade de o indivíduo adquirir novas próteses. O “poder” pois, é o mecanismo exterior à relação que provoca aparente equilíbrio onde ele realmente não existe. Esta reação em cadeia levaria o indivíduo, grupo ou classe ao poder absoluto se, num certo momento, esse processo circular não deixasse de receber realimentação. Com o tempo, se não aparecessem mecanismos corretores, o grupo que domina o poder passaria a ser uma nova espécie, cujo “alimento” seria a espécie dominada... Contudo, esses mecanismos corretores aparecem. O desenvolvimento da inteligência, por exemplo, a prótese que maiores vantagens acrescenta na capacidade de dominação, não de pode fazer sem relações de reciprocidade, isto é, sem supressão da dominação. Deste modo, em certo momento, não interessa mais a quem domina pela inteligência levar a dominação avante à custa de seu desenvolvimento integral, e mesmo podendo-se dizer, mutatis mudandis, de outras próteses. Em geral, espera-se que a reação contra o progressivo aumento de poder de dominação provenha de uma revolta dos dominados, o que é pouco provável, pois a dominação implica no enfraquecimento progressivo da capacidade de reação. O caso da libertação das mulheres, por exemplo, é bem elucidativo.
Num certo momento histórico ou psicológico, começou a ser empobrecedor para o homem-dominador o estado de dominação da mulher - o convívio com um débil mental, por exemplo, é prejudicial ou pouco estimulante - , de modo que os próprios machos mais inteligentes  começaram a promover o desenvolvimento das mulheres por puro egoismo. Os historiadores afirmam que a abolição da escravatura tem explicação semelhante … A necessidade que o sistema capitalista teve de engajar a mulher na produção (sociedade de consumo, mão-de-obra barata, convocação dos homens para a guerra, etc) levou o establishment a promover o desenvolvimento da mulher, fato que cria uma reação em cadeia capaz de  levar a mulher a procurar sua própria libertação. Tudo isso pode ser repetido em relação a qualquer classe ou grupo social dominado: não há exemplo histórico em qualquer grupo social longamente oprimido se tenha libertado sem que o processo haja sido iniciado pelo interesse (quase sempre imediatista) do próprio dominador. Os empresários atuais começaram a compreender, por exemplo, que a manutenção de rígida hierarquia e de dominação brutal não é de seu interesse a curto prazo. A  dominação priva-os da boa vontade, da criatividade e da cooperação dos subordinados, fato que os leva a permitir e estimular atitudes de  autonomia (no mínimo criam  mecanismos de “promoção humana” e de “relações humanas” que, por mais interesseiros ou hipócritas que sejam, iniciam um processo a longo prazo de rebeldia contra a dominação). Para o conflito, a solução é a associação e o contrato social (a democracia).
Mas os organismos vivos não iniciam a vida abruptamente: há sempre um período maior ou menor de crescimento. A primeira prótese ontogenética que dá vantagens a alguns indivíduos sobre os outros é a  condição de “progenitor” e de “educador”, prótese que, em termos antropológicos, denomina-se gerontocracia. Pode-se, pois, dizer que a dominação, isto é, o poder, tem sua origem biológica (ontogenética) na paternidade, e a filogenética na gerontocracia e não simplesmente na desigualde econômica e na usurpação da mais valia (o contrário é que  deve ser verdadeiro: o poder permite a usurpação). Assim, não se elimina a dominação simplesmente ao evitar-se a desigualdade econômica … Tanto é assim que o próprio Marx julga que os oprimidos podem rebelar-se contra esta usurpação e corrigir a situação … mediante a tomada do poder! Da posse do poder é que se iniciaria a homogeneização econômica … O fenômeno do poder, pois, é muito mais complexo e tem origens muito mais profundas. Quando Marx investiu, por exemplo, contra a religião, admitia consciente ou inconscientemente que o estado de dominação dos oprimidos não se explica apenas pelas desigualdades econômicas. O que os marxistas chamam “alienação”, a psicologia hoje explica como um estado de “infantilização”... todo dominador é, no fundo, um pai (carinhoso ou brutal, como ocorre serem os pais). A liberdade, pois, é antes de tudo a morte do pai (seja qual for a natureza da paternidade). O indivíduo só é adulto quando não reconhece mais paternidades, isto é, quando deixa a condição de filhote. A mística da paternidade humana domina avassaladoramente onde quer que a dominação não resulte da simples coação física. Quase sempre a própria dominação física não dispensa uma ponderável dose mística de relação paternal, começando pela universal  convicção de que Deus é o pai de todos os homens, com poderes absolutos de premiar e castigar... A comprovação de que houve esta independentização é o conflito, e sua solução, o acordo, isto é, a relação democrática em que as partes se tratam com respeito mútuo (“moral da solidariedade” frente à “moral heteronômica do dever” - Jean Piaget).
Quais as funções básicas do pai? Quais as funções úteis e biologicamente indispensáveis enquanto o filho está em crescimento e é ainda incapaz de prover seu próprio sustento e defender-se das agressões do meio? São as mesmas funções exercidas pelo útero. São precisamente as que correspondem ao funcionamento autônomo de todo organismo: [a] alimentar. [b] proteger e [c] desenvolver o filhote, de modo que, transpondo o problema para o nível sociocultural, pode-se distinguir, na origem, três tipos básicos de dominação ou de poder: [a] econômica (alimentação), [b] educacional (desenvolvimento) e [c] política (defesa). Quando, na adolescência do filhote, se manifestam os primeiros sintomas de rebeldia, os pais invocam, invariavelmente, sua “obrigação” de alimentar, orientar e defender o filhote, a seu ver “ainda” incapaz de sobreviver de forma autônoma. Isto revela um aspecto ambivalente na dominação, aspecto que aparece claro na proposta tecnocrata de uma sociedade gerida por uma classe social mais sábia: é a noção de paternidade transposta para o nível sociológico.
Os tiranos também apelam para este tipo de argumento: desenvolvimento (alimentação), segurança (defesa) e pureza ideológica (orientação), argumentos que mascaram a dominação. Quando esta dominação biológica (ontogenética) passa a ser sociológica (filogenética), temos os três sistemas básicos de dominação existentes na sociedade: [a] a que compreende a posse dos meios de produção (dominação econômica), [b] a que compreende a ideologia do grupo (religião, educação, tabus, valores, costumes, etc), [c]  a que compreende a organização social, cuja finalidade é a pretensa defesa dos direitos do indivíduo inerme perante os mais fortes, defesa que será feita pelos que têm o poder máximo - o Estado e sua burocracia, sobretudo a polícia, que adquire permissão de usar a violência. Basicamente, mesmo do ponto de vista biológico, o poder do pai se expressa por seu poder de “disciplinação” (força física) que vem a corresponder, na ordem sociológica, ao poder executivo (poder armado), de modo que , em última análise, todo poder é coação (assimilação). O próprio pai, a certa altura, não poderia continuar a ser pai (protetor) sem a capacidade de coação, o que mostra a farsa das alegações de proteção... Quando o poder de coação baseado na força corre perigo, o pai usa o “poder econômico” para dar-lhe nova solidez (do ponto de vista sociológico, esse fenômeno aparece como “estatização”).
Porém, mais que o poder econômico (que é exterior), é o poder ideológico (doutrinação) que garante a dominação, na medida em que é a organização das relações sociais. Deve-se entender que o político é a essência do poder, razão pela qual o Estado (expressão do poder político) se fortalece na linha da absorção progressiva destas duas outras formas de dominação. A censura (negativa) e a propaganda (positiva) governamentais, por exemplo, são as formas de “estatização” da pluralidade ideológica da sociedade (o totalitarismo político leva ao totalitarismo econômico e este, necessariamente, ao totalitarismo ideológico), de vez que a ultima ratio do poder é a força. Ora, a força é simplesmente a manifestação da capacidade de assimilação do objeto.
O poder, pois, é basicamente a força (capacidade de dominar), quer esta força provenha das baionetas, quer do controle econômico (alimentação) ou ideológico (dominação da “alma” do dominado). No fundo, pois, o “altruísmo” dos pais que alimentam, protegem e educam os filhotes, reflete apenas os mecanismos de função básica do organismo vivo que é assimilar tudo e todos, quer isto se faça pela força, quer por processos econômicos ou ideológicos... No fundo, os filhotes são a ampliação do espaço-vital dos pais no tempo e no espaço, nada tendo a relação pais-filhos da “sublimidade” que se lhe pretende atribuir, da mesma forma que não são altruístas ou magnânimos os cuidados do tirano paternalista: ambos cuidam apenas da conservação e manutenção de seu “território”, como o senhor de escravos cuida de alimentá-los porque  são um bem econômico a ser preservado.
O Estado tradicional encarna basicamente o poder político, para isto dispondo apenas da força pura. Neste Estado tradicional, o poder econômico ainda nascente (produtores, transportadores, comerciantes) e o poder ideológico (educadores, sacerdotes, artistas, cientistas, etc) conservam-se mais ou menos autônomos, na medida em que não questionam o poder do estado. Em geral, esses dois poderes abrigam-se sob a proteção do Estado, dispensando-se o Estado de controlá-los. Assim, o poder político é sempre dominador, podendo, a qualquer momento, assumir o poder econômico (estatização) e o poder ideológico (censura e propaganda) - quer dizer, totalitarismo. Mas não é fácil para o poder político dominar os demais. É muito mais difícil ainda o poder econômico e ideológico dominarem o poder político. Tradicionalmente, o poder econômico impõem-se ao poder político pela corrupção, de modo que não é verdade que o poder decorra  da posse dos meios de produção, como afirmam certas doutrinas. A luta do poder ideológico faz-se contra o poder político, primeiro, por meio do sagrado e, depois da racionalização progressiva (ciência) dos processos de produção e de governo. Frequentemente, entretanto, o poder político se exacerba e domina todos os demais, tendendo modernamente a tornar-se totalitário.
O grande pai, pois, é o poder político. Em todas as instituições (educacionais, governamentais, econômicas, etc) reproduz-se o mesmo modelo básico. Numa empresa, por exemplo, pode-se identificar o poder político nos gerentes e chefes, e o poder ideológico nos técnicos e o poder econômico nos capitalistas - podendo o equilíbrio não ser o que se apresenta na macroestrutura, pois o capitalista, por ser proprietário dos meios de produção, pode sobrepor-se aos técnicos e determinar o comportamento dos gerentes e chefes. Isso pode ocorrer ocasionalmente também no plano governamental: uma grande empresa pode determinar comportamentos ao poder político, conquanto o poder político não utilize a força para dominar o poder econômico. A sociedade anônima é uma espécie de “estatização” dos bens de uma empresa privada (com a sociedade anônima, desaparece o capitalista, isto é, o poder econômico autônomo). A experiência mostra que isto em nada modifica a estrutura de dominação das empresas. Os gerentes (o poder político) continuam a agir como se fossem capitalistas … O problema, pois, está sempre na democratização do poder político, uma vez que com este poder controlado tudo é possível em matéria de “negociação”... Se o poder mantém-se sob controle dos membros da sociedade (democracia), tudo mais pode vir a ser controlado pela ascendência que a política tem sobre o econômico e o ideológico. O problema, pois, é saber como se pode manter a democracia diante da ameaça permanente da força física … que predomina no poder político (poder executivo).

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2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. LIVRO IMPERDÍVEL PARA QUEM QUER ENTENDER MELHOR O FUNCIONAMENTO DO SER HUMANO E DA SOCIEDADE!

    IMPRESCINDÍVEL PARA QUEM SE IMPORTA COM A POLÍTICA E DESEJA CONHECER AS BASES TEÓRICAS DA LIBERDADE;

    CONTEÚDO TRANSDISCIPLINAR TRANSFORMADOR AINDA NÃO ABORDADO PELAS UNIVERSIDADES E ACADEMIAS, IDEAL PARA NOVAS PESQUISAS E ARTIGOS;

    LIVRO EXTRAMEMENTE AGRADÁVEL E DENSO, NARRADO EM UM ESTILO INCONFUNDÍVEL DE QUEM NÃO SE RETRAI DIANTE DE ÍDOLOS E ARAUTOS QUE NÃO SE SUSTENTAM TEÓRICAMENTE;

    LIVRO EXTREMAMENTE DIDÁTICO E INTELECTUALMENTE EXIGENTE, RIQUÍSSIMO EM ANALOGIAS E IMAGENS QUE AJUDAM A DESMISTIFICAR OS CONCEITOS DE AMOR, DE EDUCAÇÃO, DE PODER, DE POLÍTICA ;

    E COMO NÃO PODERIA DEIXAR DE SER, SE APÓS OS TEXTOS O LEITOR NÃO SENTIR NENHUM INCÕMODO, SE NÃO COLOCAR EM DÚVIDA SUAS PRÓPRIAS CRENÇAS CRISTALIZADAS, DEVE TENTAR NOVAMENTE, POIS SIMPLESMENTE NÃO O ENTENDEU, O QUE ALIÁS NÃO É NADA CONSTRANGEDOR.

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