sábado, 24 de setembro de 2011

MASSACRE DOS INOCENTES




(Hecatombe escolar – Georges Bastin, Dessart, 1966)
                Rousseau (1712 – 1778) tratou seus filhos de forma execrável (rejeição e abandono), mas redimiu-se historicamente ao proclamar que “a criança não é um adulto em miniatura”. Hoje, essa afirmação parece banal. Mas, foi por não saber disso que, durante séculos e séculos, as escolas massacraram as crianças, tentando tratá-las como se fossem adultos. Os “passos formais” de Herbart, por exemplo, que chegaram até nós sob a forma dos “planos de aula” de L. A. de Mattos, são um pseudomodelo de como a mente assimila informações. Pretendia-se que as crianças, desde o nascimento, aprendiam segundo essa sequência, empiricamente inventadas. Mesmos que os passos formais descrevessem fielmente o mecanismo de assimilação da mente do adulto (filósofo) – o que não é verdade – ainda assim, usá-los como processo pedagógico, com indivíduos que ainda não são adultos, seria violar a especificidade da criança. Como se desconheciam, antes de Rousseau, não só os mecanismos gerais da assimilação do organismo, em geral, e da mente, em particular, mas, sobretudo da maneira específica de como a criança assimila a realidade, em cada estádio do seu desenvolvimento mental, usava-se a violência física e psicológica para forçar os alunos a assimilarem os conteúdos (aprendizagem).
                Quando Rousseau proclamou a especificidade da mente da criança, apesar de não saber determinar a natureza dessa diferença, os educadores advertidos começaram a buscar novas maneiras de educar, que dispensassem a violência como condição de provocar o esforço do aluno. “Escola Nova” foi o nome que se deu a essa pesquisa de métodos adequados às crianças. Desconhecendo-se a psicologia evolutiva (psicogenética), a epistemologia genética dos conhecimentos (desenvolvimento do pensamento científico), a psicologia da inteligência, etc., a maioria dos inovadores enveredou para a simples supressão da violência escolar, o que pareceu ser o aspecto “menos infantil” da atividade escolar, culminando-se na “pedagogia do amor” e nas “clínicas ortofrênicas”, sem se tomar qualquer providência que modificasse o processo didático. Com isso, supôs-se que a escola se adaptava às especificidades da criança! Ora, a violência não era o objetivo perseguido pela escola clássica. Era a exigência provocada pelo fracasso dos métodos usados: o que não se obtinha pedagogicamente buscava-se obter pela coação. A supressão pura e simples de coação resultou no rebaixamento da “aprendizagem”, levando, hoje, os partidários do “conteúdo” a propor a volta dos “métodos antigos”, o que equivale à volta da violência!
                O problema do rendimento escolar é cognitivo (mecanismos de assimilação) ou é afetivo (violência, prêmio, maturação, coração, etc.)? A “escola nova”, em geral, optou pela afetividade, mesmo porque, no momento (século XIX), nada se sabia ainda sobre os mecanismos mentais de assimilação da realidade (relação do sujeito com o objeto ou do organismo com o meio). Hoje, a ciência (ver J. Piaget) dispõe de abundantes informações para adequar o processo escolar ao desenvolvimento mental das crianças e, mais do que isso, para construir uma didática correspondente aos mecanismos de assimilação da mente humana. O desconhecimento desses mecanismos é que gerou o espetacular fracasso escolar universal e histórico, motivo da violência escolar. Mas o conhecimento do lento e complexo desenvolvimento mental das crianças não foi tudo. Começou-se a perceber que a organização das classes pela idade cronológica (modelo tradicional de agrupamento das crianças no sistema escolar) era massacrante para uma parte ponderável das crianças (bem dotadas e excepcionais, ou simplesmente retardadas ou com lentidão de desenvolvimento).
                Descobriu-se que o desenvolvimento mental (estádios) depende de fatores endógenos (desenvolvimento do sistema nervoso) e de fatores exógenos (clima de estimulação do meio em que vive a criança; as crianças rurais, por exemplo, apresentam um atraso de, por vezes, quatro anos em relação às crianças urbanas). Todo mundo sabe, por exemplo, que uma criança recém nascida, não pode digerir certos alimentos (conteúdos). Não se sabia, porém, que a mente também seleciona, do meio ambiente, em cada estádio de desenvolvimento, um tipo de “conteúdo” (informações) para “digerir”. Reconhecer fatos como esses implica na implosão de todo o sistema escolar tradicional. As crianças até 6/7 anos, por exemplo, não compreendem situações que impliquem em operações lógicas de reversibilidade. Daí para frente pode-se enumerar toda uma escala de assimilações progressivas dependentes da correlação entre a construção das operações lógicas e a complexidade da realidade ou dos “conteúdos”. A explicação da causalidade, por exemplo, passa por mais de uma dezena de modelos, antes de chegar à forma hipotético-dedutiva-indutiva do “método científico”, provocando limitações drásticas na elaboração dos programas (tópicos), precisamente isso que chamamos de “conteúdo”. A aprendizagem da leitura e da escrita, por exemplo, implicam em combinações e permutações (de letras e de sílabas), operações tardias no desenvolvimento mental das crianças.
                O que ocorria ao longo do processo escolar histórico e universal, para se respeitarem os fatores resultantes do desenvolvimento? Simplesmente usou-se a violência física ou psicológica (métodos antigos) ou as motivações materiais e/ou afetivas (métodos novos) para vencer as barreiras do desenvolvimento mental, evidentemente em pura perda, pois não se pode acelerar além de certos limites, o desenvolvimento mental (seria como pretender acelerar a gestação uterina da criança). São previsíveis as conseqüências patológicas desse massacre, daí o aparecimento dos especialistas em “reeducação” (distúrbios psicológicos, dislexia, atraso mental, etc.). Em toda parte e em todos os tempos, em geral, é espantoso o “fracasso escolar”, independentemente do nível sócio cultural. Para consolo dos países subdesenvolvidos, na Bélgica, em 1960/1961, um terço dos 1.368.590 alunos do sistema fracassaram na escola; o mesmo aconteceu na França, onde fracassaram 32% de alunos nas classes iniciais e 62 a 70% nas classes de fim de estudo. Um relatório da UNESCO (E. Faure) concluiu que é universal a “decadência do sistema escolar”, o que provocou longa e apaixonada discussão da tese de Illich sobre uma sociedade sem escolas (I. Illich questiona a validade de tão pesado investimento feito pela sociedade adulta). O aparente aumento do fracasso, nos últimos tempos, deve-se, provavelmente, à diminuição da violência escolar (ver o rendimento extraordinário das classes de alfabetização no Japão, onde se usa extrema violência). Em muitos países, inclusiva na França e no Brasil, reclama-se da diminuição do rendimento escolar (“mais conteúdo” é o slogan dos pedagogos sociologizantes), apelando-se para a volta aos “métodos tradicionais”, processo empírico baseado na “recitação” (lição ou aula), seguido de medidas punitivas para forçar o aluno a decorar (aprender), donde se conclui que o apelo para que se volte aos métodos antigos é, simplesmente, um “apelo à violência”!

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